De mais 64 por cento para menos
85 por cento
A opinião de
George Rupp
(Jornal O Público, 21 de Novembro de 2006)
A 27 de Outubro, o primeiro-ministro, José Sócrates,
deu excelentes
notícias
à comunidade científica
portuguesa, anunciando para 2007 a
"
maior subida orçamental num ano desde há várias
décadas e a maior num só ano nos países europeus
"
do investimento público na ciência, isto é,
um aumento de 64 por cento.
No entanto, recomposto da euforia após ter lido tal glorioso
anúncio,
voltei a debruçar-me sobre o imbróglio
de como cumprir
os compromissos com colaboradores estrangeiros
e fazer face
a outras despesas resultantes da minha actividade científica.
Facto é
que o centro de investigação a que pertenço,
o Centro de Física das Interacções Fundamentais (CFIF)
do Instituto Superior Técnico,
recebeu em 2006, até agora,
apenas 15 por cento
da sua dotação anual normal
no âmbito do financiamento plurianual,
isto é, uma redução de
85
por cento.
É claro que os prometidos mundos e fundos só se referem
ao ano de 2007,
pelo que seria legítimo concluir que nós,
cientistas,
apenas teremos de aguentar mais um mês e meio até
chegar o alívio financeiro.
Porém, já na apresentação do Orçamento
do Estado para 2006,
há um ano, fora prometido um aumento
para a ciência e tecnologia (C&T) de
6,3 por cento
e não um corte de 85
por cento.
Naturalmente, do ponto de vista matemático, não há
qualquer incompatibilidade
entre os valores de mais
6,3 por cento
(ou até mais 64 por cento)
e menos 85 por cento,
uma vez que pode ter havido uma reorientação drástica
nas prioridades de financiamento em C&T,
resultando num aumento enorme dos orçamentos
de certas instituições e um corte brutal para outras.
Também politicamente não haverá nada a apontar,
pois um governo maioritário é livre de tomar
as suas próprias opções em C&T,
por mais que se possa discordar delas.
Por exemplo, se se considerar que um centro de excelência como
o CFIF,
que se dedica à investigação de ponta
em
física de partículas, física da matéria
condensada, física nuclear e física matemática,
deve ser sacrificado,
bem como muitos outros centros nos quais se faz investigação
fundamental,
obviamente não posso ficar a aplaudir
e farei ouvir o meu protesto.
Mas isto não me impedirá de prosseguir o meu trabalho,
mesmo em condições muito adversas,
tentando utilizar o pouco dinheiro que eventualmente sobrar
da forma mais produtiva possível.
O que já não considero aceitável é o contraste
gritante entre o bombástico discurso oficial sobre C&T,
do tipo genérico, e a triste realidade do nosso dia-a-dia,
sem que haja qualquer justificação
ou sequer explicação para o que se passa.
Chegou a altura de se deixar de tratar os cientistas como menores,
aos quais é sempre exigido o máximo rigor e transparência
na gestão dos parcos fundos recebidos,
ao ponto de às vezes
parecerem ser considerados potenciais delinquentes.
Enquanto isso, as entidades financiadoras do Estado simplesmente
não respondem,
ou apenas de forma evasiva, a solicitações
ou pedidos de esclarecimentos,
tornando um planeamento racional
da nossa actividade científica impossível.
O fosso entre os mais 64
por cento oficiais e os menos
85 por cento reais é
demasiado grande para a minha paciência.